Após todas as polêmicas e escândalos relacionados a privacidade dos últimos anos, o Facebook é hoje uma das empresas mais enroladas com governos no mundo. Em vez de se manter afastada de novos transtornos, a companhia decidiu se envolver em mais um plano que já está trazendo novas dores de cabeça: a criptomoeda Libra.

Revelada em junho, a moeda só deve começar a circular a partir de 2020, com a promessa de facilitar transferências monetárias entre pessoas, mesmo que estejam em países diferentes. Desta forma, o Facebook e seus parceiros seriam capazes de cobrar tarifas muito inferiores às que o mercado já cobra.

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No entanto, antes de entender o motivo de o projeto ser tão polêmico, é necessário entender o que é o projeto e como ele funciona.

O que é a Libra?

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No mês passado, o Facebook anunciou a Calibra, uma subsidiária que terá como meta desenvolver uma carteira digital para a Libra, a criptomoeda, e que será incorporada a aplicativos como o WhatsApp para viabilizar transferências e pagamentos. Também foi criada a Libra Association, grupo que reúne várias outras empresas de grande porte além do Facebook, que terá a missão de apoiar a difusão da moeda. Entre elas estão Uber, Mastercard, Visa, eBay, PayPal, Spotify e MercadoPago, para mencionar apenas os nomes mais conhecidos aqui no Brasil.

Os membros da fundação terão como uma de suas responsabilidades participarem do blockchain que sustentará a Libra, operando um dos nós necessários para sustentar a rede. Isso significa que eles deverão dedicar poder computacional para validar as transações que envolverem a criptomoeda, para garantir que nenhuma anomalia aconteça, como, por exemplo, um usuário transferir R$ 10 para outro sem que a quantia seja debitada de sua carteira.

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A ideia do Facebook com esse projeto é alcançar especialmente as pessoas que já têm smartphones, mas não tem acesso a serviços bancários, efetivamente servindo como uma alternativa ao dinheiro para pagamento por bens e serviços e transferências entre usuários.

No que ela é diferente da Bitcoin?

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Se você não se escondeu numa caverna nos últimos três anos, pode ter visto a montanha russa da Bitcoin e outras moedas similares. O sobe e desce de valor desenfreado fez com que as criptomoedas se tornassem um investimento de alto risco, dificultando o seu uso para troca por bens e serviços, que deveria ser a função primária de uma moeda. Afinal de contas, um vendedor não quer vender um produto por, digamos, R$ 10 e descobrir que esse dinheiro está valendo R$ 7 no dia seguinte. Da mesma forma, alguém pode pensar duas vezes antes de fazer uma compra se imaginar que seus R$ 10 podem estar valendo R$ 13 no dia seguinte.

Essa volatilidade é um obstáculo para adoção da criptomoeda como moeda, o que fez com que o Facebook e seus parceiros desenvolvessem uma “stablecoin”, o que, como o nome indica, tem valor estável, o que a torna mais interessante como meio de pagamento e menos como um investimento.

Para isso, foi necessário ir contra um dos pilares da Bitcoin e similares que não têm qualquer lastro, o que faz com que seu valor seja definido unicamente pelo quanto seus usuários acreditam que ela vale. A Libra tem, sim, seu valor vinculado a alguma coisa no mundo real: outras moedas, como dólar, o euro, o franco suíço, o iene e a libra esterlina.

Neste sentido, a Libra Reserve é fundamental para conseguir manter esse projeto de moeda estável funcionando. Quando alguém troca o seu dinheiro pela Libra, a quantia vai direto para esse fundo, que serve como lastro para as moedas em circulação. A associação prevê o ajuste da composição dos bens ligados a este fundo de forma dinâmica para balancear o valor da criptomoeda e evitar grandes variações de preço.

Uma outra diferença importante para a Bitcoin é o fato de que a Libra não é totalmente descentralizada. Enquanto a Bitcoin permite que qualquer um opere seus próprios nós e participe do blockchain da moeda, apenas os membros da Libra Association vão operar os nós da criptomoeda do Facebook, o que significa que a verificação e validação das transações estarão nas mãos de um grupo consideravelmente menor de organizações. Os críticos apontam que essa centralização pode facilitar a censura e ataques cibernéticos contra a rede.

E por que há tantos governos atacando a Libra?

Governos pelo mundo nunca foram exatamente fãs das criptomoedas, e em múltiplas vezes já tomaram ações para regulamentá-las ou proibi-las completamente em seus territórios. Quando o Facebook está envolvido, a reação tende a ser mais forte, por vários motivos.

Não há como negar que o Facebook é gigantesco, com mais de 2 bilhões de usuários diários espalhados pelo mundo. Na prática, se a Libra cair no gosto dos usuários, ela poderia de fato se tornar um sistema financeiro internacional à parte, com um alcance muito maior do que qualquer outra moeda, o que fez com que até mesmo Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, se manifestasse contra a proposta, temendo o enfraquecimento do dólar, que ainda é a principal referência para transações internacionais.

Temores similares já fizeram com que outras nações se manifestassem de forma firme contra a Libra. Bruno Le Maire, ministro da Economia da França, afirmou que a criptomoeda do Facebook deveria ser contida, temendo que ela pudesse se tornar uma moeda soberana que poderia competir com as moedas estatais. Benoit Coeuré, membro do conselho executivo do Banco Central Europeu, também demonstrou preocupação, afirmando que não é possível permitir que a Libra opere dentro de um “vácuo regulatório”.

No Reino Unido, a Autoridade de Conduta Financeira também fez seus comentários sobre o assunto, afirmando que até o momento o Facebook não ofereceu detalhes suficientes sobre a Libra. Desta forma, a organização vai estudar com o ministério da Economia e o Banco da Inglaterra qual é a ação a se tomar em relação à criptomoeda. Já a Índia já havia banido criptomoedas no país, e o anúncio do projeto já deixou as autoridades locais incomodadas, mesmo com a escassez de detalhes.

Existe um temor claro também com privacidade, já que o histórico do Facebook depõe contra a companhia. Afinal de contas, se a Libra realmente ganha fôlego, a empresa poderia manter um histórico de transações do mundo inteiro. A companhia enga que tenha esse interesse, no entanto, afirmando que as negociações serão gerenciadas pela Calibra, e não pelo Facebook, e que os dados não seriam misturados com as informações da rede social. A questão é que hoje em dia é difícil confiar que a empresa de Mark Zuckerberg manterá sua palavra, mesmo que David Marcus, que comanda a Calibra, negue qualquer interesse em misturar as coisas.

Por fim, como sempre é o caso com as criptomoedas, há o temor de facilitação de negócios ilícitos, como tráfico de drogas, já que é mais difícil rastrear de onde vem e para onde vai o dinheiro. De fato, a Bitcoin e outras criptomoedas são amplamente utilizadas para pagamento de serviços e produtos ilegais na Deep Web, mas sua operação não está limitada a esses usos. A empresa, no entanto, diz estar desenvolvendo maneiras de impedir o uso da Libra para lavagem de dinheiro e pretende disponibilizar o histórico de transações para autoridades a fim de minimizar a utilização de sua moeda para fins ilegais.