DUBLIN, Irlanda — Existe um lugar onde Google, Facebook, Airbnb, Twitter e um sem-número de companhias de tecnologia dividem espaço como vizinhas. Na hora do almoço, funcionários de uma podem esbarrar com colegas de outra pelas ruas; eles até moram nos mesmos prédios, frequentam bares e academias em comum e têm importante status social junto ao governo, embora também carreguem parte da responsabilidade pela gentrificação local. Mas esse lugar não é o Vale do Silício, apesar das semelhanças, e sim Dublin, capital da República da Irlanda.

O país, que se convencionou chamar apenas de Irlanda, na verdade compartilha seu nome com a ilha onde está situado (a Ilha da Irlanda) e com a nação vizinha, a Irlanda do Norte — que foi responsável por construir e de onde saiu o Titanic. A Irlanda é um pedaço da União Europeia que fica totalmente descolado do continente, tendo sua ilha ainda mais afastada de lá do que a Grã-Bretanha, e que, por causa do Brexit, em breve ficará isolado dos demais países que compõem o bloco — já que a Irlanda do Norte faz parte do Reino Unido e, portanto, deve deixar a UE junto com Inglaterra, País de Gales e Escócia.

Composta por pouco menos de 5 milhões de habitantes, a Irlanda fez fama pelo mundo devido a estereótipos culturais como duendes e seus potes de ouro ao fim do arco-íris, a cerveja Guinness, o Dia das Bruxas (que começou aqui) e a afabilidade do seu povo. Toda essa imagem permanece inalterada, mas de uns anos para cá ela ganhou um incremento que vem saltando aos olhos de investidores e jovens profissionais, e tudo graças à invasão de empresas grandes e pequenas que estão inseridas no mercado de tecnologia.

E não é para menos, afinal, Apple, Dropbox, eBay, Facebook, Google, LinkedIn, Oracle, Yahoo e PayPal escolheram a Irlanda para sediar os escritórios que comandam todas as suas atividades na Europa, Oriente Médio e África. Já Airbnb e Twitter e estão entre as companhias que estabeleceram aqui suas bases de comando europeias. Existem Microsoft Ireland, Symantec Ireland e Intel Ireland, sem contar que Amazon e IBM também estão no país, tendo a segunda aberto um de seus centros de pesquisa na Irlanda. Até a Uber, que foi proibida pelo governo de introduzir seu modelo de transporte em carros particulares no país, mantém um “centro de excelência” por aqui — o único fora dos Estados Unidos.

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“O setor de tecnologia da Irlanda é um dos que crescem mais rapidamente na economia irlandesa, com [a taxa de] empregabilidade tendo aumentado 40% desde 2010”, disse ao Olhar Digital uma porta-voz do IDA Ireland, agência semi-estatal que atrai investimento estrangeiro para o país. “Companhias como Google, Intel, Facebook, Twitter, Symantec e Amazon expandiram suas operações na Irlanda, enquanto empresas como SmartBear, Aditi Technologies, Marin Software estabeleceram operações na Irlanda pela primeira vez.”

A maioria delas fica em Dublin, a capital. Boa parte agrupada em uma região que hoje ostenta o apelido de Silicon Docks, um conjunto de docas que entrou em atividade no final dos anos 1790 e chegou a ser considerado o maior empreendimento do tipo do mundo, mas que se deteriorou em poucas décadas, principalmente devido ao advento das linhas férreas. Em 2000, a área passou por um enorme processo de revitalização que a rejuvenesceu e modernizou; a transformação foi tão feroz que o lugar parece não fazer parte do restante da cidade, ainda mais porque foi lá que nasceram alguns dos maiores edifícios de Dublin, que, como boa parte dos países europeus, tem sua paisagem marcada por prédios baixos o suficiente para que seja possível usar a pontinha das igrejas como guia.

UM EXÉRCITO DE TRABALHADORES

E o maior entre os edifícios comerciais, com 15 andares em 67 metros de altura, pertence ao Google. Em Dublin, o apelido “gigante de buscas” vem com um apelo palpável. Quando desembarcou na cidade, em 2003, o Google empregava uma centena de pessoas; no ano passado, a empresa informou ter passado das 6.000, sendo metade desse número composto por funcionários diretos e a outra metade, por colaboradores em regime de contrato. O Facebook é outro que impõe respeito nas redondezas, já que tinha cerca de 1.500 empregados em 2016; sem contar que, naquele ano, a empresa anunciou ter escolhido a Irlanda para acomodar seu sexto centro de processamento de dados no mundo.

Subindo o canal que desagua nas docas, a sede do LinkedIn também chama atenção, ainda mais porque a empresa, que chegou por aqui em 2010 com apenas três funcionários, alcançou os 1.200 neste ano. Atravessando Silicon Docks para o outro lado, chega-se à Oracle, que só em janeiro de 2016 contratou 450 pessoas em Dublin, elevando sua força de trabalho a cerca de 2.000. A Oracle, aliás, está na Irlanda há mais de 30 anos e forma o time das veteranas, companhias que desembarcaram no país muito antes do boom atual. Outra da velha-guarda é a Microsoft, que chegou às três décadas na Irlanda em 2015 e hoje comanda um complexo empresarial ocupado por 2.000 profissionais.

Mas quem mais faz o noticiário ferver na Irlanda é a Apple, que está bem longe de todas essas outras empresas tanto em termos geográficos quanto de faturamento e pessoal. Ao contrário da maioria, a marca da maçã se estabeleceu em Cork, uma cidade que rivaliza com Dublin assim como acontece entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em 2015, o CEO Tim Cook esteve por aqui para anunciar a construção de um novo prédio na sede local, aumentando em 25% a sua mão de obra, que alcançaria então mais de 5.000 pessoas. Estima-se, porém, que a companhia gere quase 18 mil empregos indiretos pelo país.

A Apple ajuda a explicar por que a Irlanda é tão popular entre as empresas de tecnologia, principalmente multinacionais que precisam se estabelecer na Europa. A marca da maçã luta na Justiça pelo direito de não pagar cerca de € 13 bilhões, que, na visão da Comissão Europeia, são devidos em impostos ao país que a acolheu no continente. A situação colocou empresa e governo de um lado e Comissão Europeia de outro e acabou ajudando a escancarar o modelo de taxação corporativa do país, que torna a operação de empresas de tecnologia, principalmente as que investem em negócios de internet, mais barata aqui do que na maioria dos outros países.

O ‘DUPLO IRLANDÊS’

A Irlanda cobra 12,5% de imposto sobre o lucro de quem quiser se estabelecer no país e praticamente ignora operações de venda realizadas internacionalmente mesmo que tais operações tenham a sede irlandesa como representante. O país também concede outros incentivos fiscais que servem como chamariz.

É um tanto complexo, então vamos por partes: os 12,5% colocam a Irlanda entre os lugares que têm taxas de imposto corporativo mais baixas do mundo. De acordo com o Trading Economics, se descontadas regiões com zero cobrança sobre lucro (como Maldívias e Ilhas Cayman), ela é o 13º país que menos taxa empresas. No material que usa para atrair investimento estrangeiro, o IDA Ireland diz que esse cenário tem sido “um dos principais elementos do ambiente corporativo favorável na Irlanda por mais de três décadas”. O Brasil, com sua taxa de 34%, está na outra ponta, pertinho dos Estados Unidos, que cobra 35% — um estudo da KPMG publicado em 2016 apontava o nosso país como dono da quinta maior alíquota de imposto corporativo do mundo.

O governo da Irlanda também oferece crédito de até 25% nos impostos para empresas que estabelecerem operações de pesquisa e desenvolvimento em seu território, o que derruba ainda mais a quantidade de dinheiro que é diretamente revertido para o país.

A parte mais complicada, entretanto, envolve a movimentação da receita da companhia através de um esquema apelidado de “Double Irish with a Dutch Sandwich”. Primeiro, a multinacional estabelecia duas filiais europeias, uma aqui e outra na Holanda; a Irlanda não cobraria imposto sobre lucros obtidos por subsidiárias fora de seu território, então uma companhia como Google poderia redirecionar a sua receita com vendas internacionais para essa empresa holandesa pagando poucas taxas por isso, já que ambas são membros da União Europeia. Da Holanda, o dinheiro ia para um paraíso fiscal, onde poderia simplesmente não ser taxado. A Holanda tinha que entrar na história porque o país também tem um sistema de imposto corporativo agradável para certas situações (nessa do “Double Irish”, por exemplo).

A Apple, que aportou na Irlanda nos anos 1980, foi uma das primeiras a tirar proveito disso, e seu modelo ficou tão bem feito que acabou copiado por várias outras empresas. Já a Alphabet (que controla o Google) evitou pagar US$ 3,6 bilhões em impostos internacionais em 2015 porque moveu US$ 15,5 bilhões da sua receita para uma empresa nas Bermudas. Nada disso era ilegal, mas o governo vetou a prática a partir de 1 de janeiro de 2015 para evitar que a Irlanda ganhasse fama de veículo para evasão fiscal — mas centenas de empresas já aproveitaram o esquema ao longo dos últimos anos, e elas poderão continuar até 2020.

Mas, embora seja o principal, como admite o próprio IDA Ireland, o sistema fiscal não é o único fator levado em conta por empresas que escolhem a Irlanda como casa na Europa. Quando estabeleceu sua companhia por aqui, em 2013, Brian Chesky, cofundador e CEO do Airbnb, lembrou que um dos estereótipos locais pinta o irlandês como um povo receptivo e acolhedor, o que combinaria com o serviço que Chesky e sua equipe oferecem. Mas tem mais: “Dublin também é um epicentro de tecnologia emergente na Europa, e uma das suas cidades mais internacionais, com quase todos os idiomas representados”, escreveu ele.

O que não deixa de ser verdade. A Irlanda é um dos poucos países da UE que têm o inglês como idioma oficial — algo que tende a ficar ainda mais evidente após o Brexit —, tanto que o país é hoje a meca do intercâmbio. Isso facilita operações internacionais e a afluência de gente, como destaca o Complete University Guide: “Tecnicamente, o gaélico é a primeira língua oficial e ela é falada diariamente por uma pequena minoria da população”, lembra a instituição, ressaltando, porém, que praticamente todos os cursos universitários do país são ministrados em inglês.

A maioria das instituições de ensino superior da Irlanda conta com cursos direcionados ao mercado de tecnologia. Um exemplo da força que o setor vem exercendo na cultura local é o fato de que, neste ano, pela primeira vez uma universidade foi ultrapassada por dois institutos de tecnologia no tradicional ranking Good University Guide, elaborado pelo Sunday Times: o Dublin Institute of Technology (DIT) e o Athlone Institute of Technology (AIT), que ocupam as sétima e oitava posições, respectivamente, deixando a Maynooth University para trás. E pode ser que esteja se formando uma tendência, porque no ano passado o DIT já tinha ficado na frente, e logo atrás da Maynooth University apareciam mais de 10 institutos de tecnologia em sequência.

“O setor de tecnologia cobre um campo grande de atividades, de fabricação de hardware a desenvolvimento de software, passando por criação de conteúdo digital, segurança de tecnologia da informação, computação em nuvem, serviços de suporte de telecomunicações e técnico”, concluiu o IDA Ireland ao Olhar Digital. “Isso garante que a Irlanda tenha uma base ampla de habilidades, o que torna o país uma oportunidade de investimento atrativa para firmas multinacionais.”